Março no Brasil, Abril em Portugal. Futum de enxofre e cheiro de alecrim, por Armando Coelho Neto

Enquanto isso, um pouco antes no Brasil, a Justiça chegou a liberar a apologia aos crimes da ditadura de 1964.

Março no Brasil, Abril em Portugal. Futum de enxofre e cheiro de alecrim, por Armando Coelho Neto

Enquanto isso, um pouco antes no Brasil, a Justiça chegou a liberar a apologia aos crimes da ditadura de 1964.



Março no Brasil, Abril em Portugal. Futum de enxofre e cheiro de alecrim por Armando Rodrigues Coelho Neto

Lisboa, 25 de abril de 2019. Uma bandeira do Brasil com o rosto do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva e uma frase escrita: “Liberdade para Lula – Preso Político”. Um menino sentado no ombro do pai, segurava firme a flâmula nacional. Brilho nos olhos, sorridente, o que se passava na mente do garoto será sempre um mistério. Mas que importa a leitura dos adultos? Seria um misto de civismo, esperança, protesto e ou sabe-se lá o quê?

Indiferente às perguntas, lá estava ele no meio dos festejos dos 45 anos da Revolução dos Cravos, em Portugal. Uma festa cívica pelo fim da ditadura daquele país.

Enquanto isso, a menos de um mês no Brasil, o presidente Bozo – aquele que beijou a bandeira dos Estados Unidos e num gesto capacho e bajulante chegou a beijá-la, fazia exatamente o inverso. Chegou a comemorar a ditadura no Brasil e incentivou militares a reverenciar crimes passados de seus pares.

A tarde fria, chuvosa e vento forte estava a sugerir fracasso da passeata. Sim, estremeceu, mas prevaleceu a garra. Os veteranos da Revolução dos Cravos se organizaram na Praça Marquês de Pombal (o grande reconstrutor de Lisboa, pós-terremoto de 1755) e desceram pela Avenida Liberdade, na região central de Lisboa. Longe dali, em muitas cidades, entre elas Braga, houve sinfonia de sinos em igrejas. Em Coimbra, autoridades lembraram a “Crise Acadêmica de 1969”, quando o estudante Alberto Martins foi impedido de falar durante a inauguração do prédio do Departamento de Matemática da universidade local. As vaias dos estudantes às autoridades resultaram na convocação de tropas do Exército. Estaria ali um dos começos da Revolução dos Cravos.

Nas comemorações deste ano, Alberto Martins, hoje advogado, disse: “Só a compreensão do passado nos dá a capacidade de sonhar e construir o futuro. Há um célebre filósofo que diz que o passado está cheio de futuros que não se chegaram a cumprir». Entre os passados que se tornaram futuros e presentes, ele assinalou a liberdade, a democracia, o fim da guerra colonial, um País mais desenvolvido. “Há também uma dimensão de sonho, de solidariedade, de humanidade, de combate às desigualdades e de liberdade… que todos temos que ajudar a cumprir.”

Enquanto isso, um pouco antes no Brasil, a Justiça chegou a liberar a apologia aos crimes da ditadura de 1964.

Em Lisboa 2019, cidadãos comuns, representantes de classes trabalhadoras, de estudantes, dos imigrantes e das múltiplas vertentes sociais se uniram aos “Veteranos da Revolução”, que costumam abrir a passeata em direção ao Largo do Rossio. A eles se juntaram o Coletivo Andorinha, um grupo suprapartidário, com sede em Lisboa – Portugal, criado para se opor ao golpe de 2014, que derrubou, com votos comprados, a Presidenta Dilma Rousseff.

Desde então, o grupo realizou mais de 50 atos em Portugal pela defesa da democracia no Brasil. Assim, durante as comemorações dos 45 anos da ditadura em Portugal, o coletivo se aliou ao Núcleo do Partido dos Trabalhadores em Lisboa, para mais um ato.  Desta feita, aproveitar a visibilidade da grande festa democrática portuguesa, para denunciar a condição de preso político do ex-presidente Lula. O protesto se avolumou com apelos pelo esclarecimento do assassinato da vereadora Marielle Franco, por milícias do Rio de Janeiro  – facção criminosa com vínculos com a família do presidente Bozo.

Os brasileiros formaram um bloco portando faixas, cartazes pró liberdade de Lula, muitos com a frase “Marielle Vive!”. Entre palavras de ordem, outro pequeno grupo de brasileiros colava em postes, placas de trânsito…  “praguinhas” com dizeres Lula Livre e Fora Bozo.  A certa altura da passeata, a ala de manifestantes que seguia os brasileiros parou, abrindo espaço na Av. Liberdade. Espaço aberto, os brasileiros começaram a gritar: “Ai! Ai, ai, ai, com o Bozo o Brasil anda pra trás”. Nesse momento, o grupo passou a andar de costas até encontrar o grupo parado lá atrás. Durou pouco, mais foi simbólico e logo a passeata retomou o curso normal.

Enquanto isso, uma rede de TV repetia à exaustão o bate-boca do ex-juizeco de Curitba com o político português José Sócrates. Também enquanto isso, no Brasil fascista, em mais uma tenebrosa transação, Bozo estaria comprando votos para acabar com a aposentadoria dos pobres.

Ao final da passeata, comícios. Alguns policiais mais ousados ostentavam o cravo vermelho. Como sinal de que o 25 de Abril já não é mais o mesmo, pelo quarto ano seguido, o presidente de Portugal Marcelo Rebelo de Souza entrou com o cravo vermelho na mão, e não na lapela, destacou a imprensa local.

À noite, na Praça do Mercado, ao som de Grândola Morena (canção-senha e símbolo da Revolução dos Cravos), a história do retorno à democracia em Portugal era contada por meio de projeções nos prédios públicos.

Fedor de enxofre no Brasil do Bozo, estava eu em Lisboa, sob o cheiro imaginário do alecrim, cumprindo uma promessa cívica de um dia me juntar aos irmãos portugueses nas comemorações da Revolução dos Cravos. Tinha um quê de sonho e magia, que por muitos anos, no Brasil, fora embalado pela canção Tanto Mar, de Chico Buarque de Holanda:

“Foi bonita a festa, pá / Fiquei contente/ Ainda guardo renitente um velho cravo para mim/ Já murcharam tua festa, pá/ Mas certamente/ Esqueceram uma semente em algum canto de jardim…

Eis que aquele menino com a bandeira do Brasil me apareceu na multidão. Era como se a tal semente esquecida no jardim viesse reafirmar a esperança.

Armando Rodrigues Coelho Neto – jornalista e advogado, delegado aposentado da Polícia Federal e ex-integrante da Interpol em São Paulo.



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Associação dos Delegados da Polícia Federal

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